Altos Papos

Cegonhas da Noite: mulher adotada busca conhecer pais biológicos após 35 anos

Se você tem informações que possam ajudar Lausanne Vicentin a encontrar os pais biológicos, entre em contato através do número: 75 9 9190-9325. 

Por João França

O dia 6 de setembro de 1989 parecia ser mais uma quarta-feira comum na vida da professora Marta Vicentin, que costumava retornar para casa, no bairro Parque Ipê, em Feira de Santana, sempre por volta das 13h, depois de um turno de aulas em um dos colégios públicos mais famosos da cidade: o Gastão Guimarães. Mas, assim que adentrou à residência, o habitual silêncio da rua foi interrompido por sucessivos e apressados toques da campainha. Quem estava à espera de Marta, ao chão, diante da porta, era um bebê que se debatia assustado dentro de uma caixa de papelão.

Na caixa também havia um bilhete escrito à mão que dizia: “Deus me mandou para este lar para ter o que minha outra mãe não pode me dar. Viu, papai, mamãe, irmãos e demais”. No verso do bilhete, um pedacinho de papel pautado por linhas pretas e margem vermelha, informava ainda: “Eu tenho um mês, não tenho nome. Uma garota que Jesus mandou para vocês”. 

Foto: arquivo pessoal

Assim começava a história de Lausanne Vicentin junto à família adotiva. Hoje aos 35 anos, a auxiliar administrativa busca conhecer suas origens e entender como foi parar nas mãos das “Cegonhas da Noite” — um grupo clandestino que entregava bebês a famílias adotivas e que atuou em Feira de Santana nas décadas de 1980 e 1990.

Neste período, Feira de Santana era um município com pouco mais de 406 mil habitantes, em ritmo de crescimento e tendência de urbanização, assim como diversas cidades brasileiras. No entanto, a desigualdade social era um dos problemas marcantes. Cerca de 26% das famílias recebiam até um salário mínimo, apesar de Feira de Santana já se destacar, naquela época, como um polo comercial e de serviços.

O grupo buscava encontrar famílias que tivessem, além de interesse, condições financeiras e afetivas para adotar crianças que supostamente viviam em situação de vulnerabilidade. A ação era apreciada por boa parte da população da cidade. Era uma rede de mulheres que, de forma anônima, identificava pessoas interessadas em adotar e depois buscava saber se o potencial lar seria seguro para os bebês. 

A mãe adotiva de Lausanne, hoje aposentada, lembra ter expressado o desejo de adoção numa conversa com colegas de trabalho, por exemplo. E dias após, uma mulher ligou para o colégio onde trabalhava para saber sobre o horário que ela geralmente voltava para a casa. 

“Em uma roda de conversa, comentaram sobre uma família que tinha recebido uma criança como um presente. Eu brinquei e disse: ‘Nem para ser na minha porta’. Eu tinha minha filha mais velha e um bebê recém-nascido, mas sentia que ainda havia espaço para mais uma criança. Mal sabia eu que, dias depois, minha vida mudaria para sempre”, relembra.

Já neste período, os boatos sobre a existência de um grupo anônimo que entregava bebês circulavam na cidade. “Alguém, que não quis se identificar, ligou para meu trabalho no dia em que Lausanne foi deixada aqui, perguntando que horas eu sairia. Uma colega atendeu e informou o horário. Quando me contou eu achei estranho, mas não dei tanta atenção. Agora, olhando para trás, vejo que aquela ligação estava diretamente ligada à chegada dela”, relata Marta.

O momento da chegada da filha adotiva também está fresco na memória. “Era por volta de uma da tarde quando a campainha tocou. Abri a porta e vi uma caixinha de papelão. Dentro, um bebê se debatia, chorando muito. Ela estava com uma roupinha simples e uma fraldinha, e a tampa da caixa protegia seu rostinho do sol forte. Olhei para um lado, olhei para outro, e não vi ninguém. Meu irmão, que pintava uma parede perto dali, desceu correndo quando me ouviu gritar. Ele olhou a rua e só viu um carro cor de café com leite dobrando a esquina. Peguei a criança nos braços, levei para dentro e fui direto dar banho”, conta.

Foto: arquivo pessoal

As perguntas sobre a história biológica de Lausanne começaram cedo. “Uma babá disse para ela que tinha sido achada no lixo. Eu cheguei em casa e encontrei minha filha, com apenas seis anos, chorando desesperada. Ela me abraçou e perguntou: ‘Mamãe, é verdade que minha mãe me jogou fora?’. Meu coração apertou, mas eu respirei fundo e disse: ‘Minha filha, você não nasceu da minha barriga, nasceu do meu coração’. Expliquei que ela tinha sido um presente de Deus e que sempre foi amada desde o momento em que chegou à minha casa”, relembra Marta.

Com o tempo, Lausanne passou a sentir a necessidade de entender suas origens. Em 2016, já adulta e com filhos, assistia a um programa de reencontros na TV, quando sua mãe adotiva a encontrou chorando. “Eu entrei na sala e vi minha filha chorando enquanto assistia a uma filha reencontrando a mãe biológica. Eu me aproximei e perguntei: ‘Você deseja encontrar sua mãe biológica?’. Ela me abraçou forte e respondeu: ‘Eu quero saber de onde vim, mas nunca vou deixar de te amar’. Foi quando percebi que a busca por suas raízes era importante para ela”, conta Marta.

As primeiras informações

Anos mais tarde, Marta encontrou uma ex-colega de trabalho e se lembrou que a mulher tinha uma agenda com o mesmo tipo de papel do bilhete e um carro com a mesma cor de “café com leite” vistos no dia em que a filha adotiva foi deixada na porta de casa. Prontamente a questionou. Pressionada, a colega admitiu envolvimento com a história e revelou, após muita insistência, alguns detalhes sobre a situação. “Ela me disse que a mãe biológica de Lausanne trabalhava como doméstica para uma enfermeira que vivia na região do shopping Boulevard. E como já tinha muitas crianças, passava por dificuldades financeiras. Foi essa patroa que tomou a iniciativa de entregar a criança”, revelou Marta.

A história ganhou um contorno ainda mais doloroso. “A enfermeira teria pegado a criança do colo da mãe durante a amamentação. A mãe sequer teve tempo de se despedir. Quando minha colega me contou isso, senti um aperto no peito. Me coloquei no lugar daquela mãe e pensei na dor que ela deve ter sentido. Até hoje, essa imagem nunca saiu da minha cabeça”, desabafa.

Hoje, Lausanne segue em busca de encontrar a família biológica. “Eu quero saber de onde vim. Quero entender minha história. Eu olho no espelho e vejo um rosto, mas não sei de quem herdei essas feições. Nunca tive um histórico familiar, não sei se tenho irmãos, se minha mãe biológica ainda me procura. É um vazio que preciso preencher”, diz.

O mistério sobre sua origem permanece, mas a esperança de um reencontro a impulsiona. Enquanto isso, Marta guarda com carinho a roupinha e o bilhete que acompanhavam o bebê, relembrando o dia em que seu coração ganhou uma filha.

Esta é a primeira reportagem de uma série que contará as histórias de filhos adotivos que chegaram às suas famílias por meio das Cegonhas da Noite. O grupo operou clandestinamente em Feira de Santana, na Bahia, por cerca de duas décadas, entregando centenas de bebês a novos lares. Agora, com essas crianças já adultas, ressurge o debate sobre os desafios da adoção legal. Ao longo das próximas reportagens, também serão abordados os impactos psicológicos, éticos e morais dessa rede que marcou a vida de tantas famílias no interior baiano.

Foto: arquivo pessoal