Em menos de uma semana, dois casos envolvendo advogados que precisaram levar os filhos pequenos para sessões jurídicas chamaram a atenção no país por razões diferentes. De um lado, um caso foi antecipado. Do outro, a mãe foi repreendida pelo desembargador.
Malu Borges Nunes amamentava e filha durante uma sessão online no Tribunal de Justiça do Amazonas quando teve a atenção chamada por um desembargador por causa do barulho da criança. Ela chegou a solicitar atendimento preferencial para não conciliar os horários da amamentação e da defesa, mas teve o pedido negado.
Felipe Cavallazzi precisou levar o filho de 1 ano e 10 meses para uma sessão no plenário do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Divorciado, era o dia de ficar com o menino, que chamou a atenção dos ministros que entenderam o caso como prioridade e anteciparam a argumentação do advogado.
A professora de filosofia Patricia Ketzer afirmou que as situações envolvem questões de gênero
“Quantas vezes a gente vê homem elogiado por fazer o mínimo, trocar a fralda, levantar para dar mamá para o filho à noite, sair para passear com o filho. São coisas que as mulheres fazem e são invisíveis [quando elas fazem]”, declarou.
A vice-presidente da Comissão de Gênero da OAB em Chapecó, no Oeste catarinense, advogada Vivian Ayumi, disse que a atitude do magistrado que repreendeu a mãe com o bebê violou o Estatuto da Advocacia.
“O desembargador, além de violar esse direito dessa advogada, ele está ferindo essa prerrogativa dela”, disse.
Casos semelhantes, desfechos diferentes
Em Brasília, o caso no qual o advogado Felipe Cavallazzi participaria foi antecipado no STJ na quinta-feira (18). Ele precisou levar o filho Lorenzo já que era dia de ele, que é divorciado, ficar com o menino.
A presença de Lorenzo chamou a atenção dos juízes da Segunda Turma do STJ que, pela criança ser entendida como prioridade, anteciparam o caso do advogado na lista de assuntos do dia.
A outra situação ocorreu no Tribunal de Justiça do Amazonas na segunda (22). Malu Borges Nunes foi repreendida pelo presidente da 2ª Câmara Cível to TJ-AM por estar com a filha, uma bebê de 6 meses, durante uma sessão plenária realizada por meio de videoconferência.
O desembargador Elci Simões paralisou a sessão por alguns segundos para repreender a advogada, afirmando que o barulho que a criança estava fazendo atrapalhava a concentração da sessão.
Após a repercussão das falas do magistrado, a advogada disse que se sentiu ofendida. “Eu me senti primeiro ofendida como mulher, como mãe, como advogada também. Ele [desembargador] questionou a minha ética profissional em relação a eu estar, não sei, com ela no colo, ou amamentando, ou de estar no home office e ela estar perto de mim. Eu fiquei muito mal, chorei bastante depois. Eu me viro aqui nos 30 para dar conta de tudo que eu tenho que fazer. Dar conta de bebê, casa, trabalho”, disse à TV Globo.
Questão de gênero
A professora Patricia Ketzer, que atua na Universidade de Passo Fundo (UPF), afirmou que o fato de os dois advogados serem tratados de forma diferenciada é uma questão de gênero.
“Pode pegar o exemplo de uma mãe solo. Ainda tem pessoas que têm visão conservadora quando veem uma mulher sem um marido, enquanto um pai solo é visto como um herói, como um homem que não abandonou o seu filho”, disse.
Ketzer falou também que há muitas crianças no Brasil que não possuem o nome do pai na certidão de nascimento.
“As mães criam os filhos, chefiam os lares, dão conta do sustento da casa. Mas, a qualquer momento que disser que está com filho doente, precisa sair mais cedo, vai ouvir que por isso que não se empregam mulheres”, afirmou.
“Quando um homem faz isso [sair do trabalho para tratar do filho doente], ele é louvado, é parabenizado, quando um homem faz o mínimo que uma mulher faz cotidianamente. Considera-se que não é papel dele [cuidar dos filhos], o homem é totalmente liberado desse trabalho”, declarou.
A advogada Liane Slaviero, que tem livros nas áreas de processo civil e direito e feminismo, também disse que a tarefa não é esperada dos homens.
“Quando adentramos em espaços públicos cuidando da prole estamos invertendo a lógica e toda a estrutura de uma suposta igualdade é coloca em prova. Quando os homens exercem a paternidade cuidando do seu próprio filho em uma sessão de audiência – tarefa que não lhes compete originariamente na divisão sexual do trabalho – ela será notada, respeitada e até honrada publicamente, porque existe esta suposta inversão de papéis”, afirmou.
O que diz a lei sobre advogados com filhos pequenos?
A Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Santa Catarina informou que as normas relativas às mães e pais advogados estão no Estatuto da Advocacia, lei número 8.906/1994.
Outra lei, de número 13.363/2016 altera o estatuto para estipular direitos e garantias para a advogada gestante, lactante, adotante ou que der à luz e para o advogado que se tornar pai.
Dessa forma, com a alteração feita pela lei mais recente, agora o Estatuto da Advocacia diz, no artigo 7-A, inciso III, que são diretos da advogada “gestante, lactante, adotante ou que der à luz, preferência na ordem das sustentações orais e das audiências a serem realizadas a cada dia”.
No parágrafo primeiro do mesmo estatuto diz que os direitos previstos aplicam-se enquanto durar o período de amamentação. O artigo 7-B diz que “constitui crime violar direito ou prerrogativa de advogado” e prevê pena de dois a quatro anos de detenção e multa.
A vice-presidente da Comissão de Gênero da OAB em Chapecó criticou a atitude do desembargador que repreendeu a advogada com o bebê.
“Sem a figura daquela advogada, aquilo tudo que estava acontecendo não poderia acontecer. Ela não estava ali brincando. Certamente ela estava dispondo do tempo como provedora daquele lar para fazer aquele julgamento, aquela sessão acontecer. Quando a gente tem um desembargador falando, pedindo até a ética dessa nobre colega, a gente vê que ele também está infringindo todo esse estatuto [da Advocacia]”, afirmou.
Por G1
Foto: montagem/G1