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80% do território indígena na Bahia não está demarcado

Na Bahia, cerca de 80% dos territórios indígenas não estão demarcados. Os dados são do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), divulgados a partir de um estudo feito em conjunto com outras associações indígenas e trata-se de uma estimativa, já que os órgãos oficiais não dão conta da totalidade de territórios. A demarcação (identificação e sinalização dos limites dos territórios ocupados por povos indígenas), regulamentada pelo Decreto nº 1775/96, é de extrema importância para a manutenção desses povos.

Para o coordenador do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), Agnaldo Pataxó Hã-Hã-Hãe, a demarcação significa a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas. “A partir do momento que o Estado reconhece aquela terra como nossa, é nos dada uma proteção para que a gente consiga manter nossas tradições, continuar construindo nossa história e garantir a chegada de gerações futuras. Além disso, nós temos a característica de cuidar do meio ambiente, então demarcar é também preservar”, aponta.

Agnaldo Pataxó, coordenador do Mupoiba, acredita haver um retrocesso na demarcação de territórios (Foto: Arquivo Pessoal)

Agnaldo Pataxó também coloca que a não demarcação é motivo de diversos conflitos. O sociólogo, antropólogo e coordenador executivo de políticas para povos indígenas da SJDHDS, Jerry Matalawê, explica: “Como há essa demora e esse impasse, muitos fazendeiros acabam criando um conjunto de iniciativas para se defender, indo para a Justiça e fazendo de tudo para acoplar aos indígenas a imagem da criminalização, o que leva até à prisão de lideranças. Nós temos 84 defensores dos direitos humanos na Bahia e, destes, 54 são indígenas. Ou seja, isso mostra a necessidade dos povos e a demora do alcance de avanços”.

Segundo Matalawê, o processo de demarcação, que deveria durar no máximo 2 anos, acaba durando até mesmo décadas. “Nosso direito está na constituição de 1988. Mas ele não funciona como deveria”, diz. O sociólogo e antropólogo ainda coloca que há uma grande demanda por demarcação, mas que, ainda assim, os territórios indígenas não têm grande representação no território total da Bahia.

“Vale destacar que as terras hoje demarcadas representam 0,25% do território baiano e, se todas as terras indígenas fossem demarcadas, elas chegariam a apenas 0,50%. Isso mostra que temos uma demanda grande e desmonta o argumento de que se a lei for cumprida vai ficar tudo para os indígenas”, acrescenta.

Aldeia do povo Kiriri (Foto: Divulgação/Mupoiba)

Projetos de lei

O coordenador do Mupoiba, Agnaldo Pataxó, aponta que as dificuldades em relação às demarcações cresceram nos últimos anos, com o surgimento de diversos projetos de lei que tendem a dificultar esses processos. “Nunca foi fácil, mas agora está ainda mais difícil. A nossa luta é grande para derrubar esses projetos”, diz. Um dos apontados por ele é o Marco Temporal. “Na nossa compreensão, o Marco Temporal é inconstitucional. Nós chegamos aqui antes de 1.500. Se há de ter um Marco Temporal, não é para a gente, mas para quem invadiu as nossas terras”, finaliza.

O chamado Marco temporal é uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que defende que povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988, dia em que entrou em vigor a Constituição Brasileira. O PL 490/2007 visa implementar o Marco Temporal, inviabilizando as demarcações. De um lado, a bancada ruralista e instituições ligadas à agropecuária defendem o marco. Do outro, povos indígenas temem perder direito a áreas em processo de demarcação. O Marco Temporal deve estar em pauta no STF em junho deste ano.

Outro projeto de destaque é o PL 191/2020, que libera atividades como mineração, instalação de hidrelétrica, exploração de petróleo e agricultura em larga escala em territórios indígenas. O projeto é de 2020 e, aproveitando a guerra na Europa, entre Rússia e Ucrânia, Bolsonaro pediu urgência à Câmara Federal sob o argumento de diminuir a dependência do Brasil de fertilizantes. O texto segue engavetado no Congresso Nacional.

Bolsonaro recebeu Medalha do Mérito Indigenista em março deste ano (Foto: Divulgação/Funai)

Além desses, as organizações indígenas elencam que estão em sua mira o PL 6.299/2002, que amplia o registro de agrotóxicos; os PLS 2.633/2020 e 510/2021, que regularizam a grilagem de terras, e o PL 3.729/2004, que afrouxa a necessidade de licenciamentos ambientais.

A Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável pelas demarcações, foi procurada para comentar sobre a demora e obstáculos dos processos e sobre os projetos de leis em andamento, mas não respondeu ao contato até o fechamento da reportagem.

Os povos

A Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) estima que há na Bahia cerca de 30 povos indígenas (Veja lista ao final da reportagem). Ao todo, de acordo com o Censo do IBGE de 2010, são cerca de 60 mil pessoas, o que faz da Bahia o terceiro estado com mais indígenas no Brasil. Já o Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba) aponta que esses 60 mil são dados de 2020 e que, em 2010, a população era de 20 mil indígenas. A explicação para a diferença é de que a pesquisa do Mupoiba só alcança indígenas aldeados, sendo difícil contabilizar aqueles que estão em ambientes urbanos não mais vivendo em comunidade.

Ainda de acordo com a Anaí, o povo mais numeroso na Bahia é o Pataxó, que vive no Extremo Sul do estado. Em seguida, vem o povo Tupinambá e os pataxó Hãhãhãi. Mas a maior diversidade de povos está nas regiões Norte e Oeste do estado. O Censo de 2010 aponta ainda que são 274 línguas faladas pelos indígenas em todo o território nacional, o que alerta para a pluralidade desse povo.

Transformações ao longo do tempo

O sociólogo e antropólogo indígena Jerry Matalawê diz que a pluralidade dos povos indígenas é algo positivo.

“Temos indígenas que tiveram mais contato com a população negra, por exemplo. Aí estamos falando de trocas sanguíneas e culturais que vêm desde a colonização, seja de forma espontânea ou criminosa. A mistura não é ruim. A ideia disso como algo ruim é uma invenção que só beneficia quem tem os privilégios nas mãos e impede as minorias de se unirem e reivindicarem direitos”, aponta Jerry Matalawê.

Ele traz também que essas trocas são constantes e que, assim como qualquer povo, os indígenas também sofrem transformações em suas vivências. “Eu saí da comunidade Pataxó, em Cabrália, há 15 anos para vir para Salvador e hoje poder atuar em favor dos povos indígenas. Minha filha saiu da aldeia com pouco mais de 1 ano. Ela vai à aldeia, eu e a mãe dela, que também é indígena, passamos os ensinamentos da cultura indígena com ela. Ela não pode ser considerada indígena? Se você de alguma maneira, tem uma identidade, não tem quem te negue suas origens”, coloca.

Para o coordenador do Mupoiba, Agnaldo Pataxó, o movimento de saída das aldeias é até mesmo essencial.

“Faz parte da nossa adaptação para buscarmos meios de sobrevivência. Essa saída das aldeias é muito por conta da falta de recursos por lá que acabam se tornando fundamentais. Se alguém sai é porque vai buscar algo que não está chegando ali. O acesso às universidades, por exemplo, é fundamental para a gente. Precisamos buscar conhecimento e, assim, termos mais de nós nos espaços de poder, de tomada de decisão”, finaliza.

Povos indígenas na Bahia e os municípios em que estão seus territórios:

  1. Atikun (Angical, Cotejipe, Curaçá, Rodelas, Santa Rita de Cássia e Sento Sé)
  2. Catuí Panká (Glória)
  3. Fulni-ô (Lauro de Freitas e Serra do Ramalho)
  4. Gueiah (Paulo Afonso)
  5. Imboré (Ribeirão do Largo)
  6. Kaimbé (Euclides da Cunha)
  7. kamakã (Ribeirão do Largo)
  8. Kambiwá (Rodelas)
  9. Kantaruré (Glória)
  10. Kapinawá (Serra do Ramalho)
  11. Kariri (Casa Nova)
  12. Kariri-Sapuyá (Jequié)
  13. Kariri-Xokó (Lauro de Freitas e Paulo Afonso)
  14. Katrimbó (Monte Santo)
  15. Kiriri (Banzaê, Barreiras, Muquém de São Francisco e Quijingue)
  16. Paneleiros-Mongoió (Vitória da Conquista)
  17. Pankararé (Glória, Paulo Afonso e Rodelas)
  18. Pankaru (Muquém de São Francisco e Serra do Ramalho)
  19. Pataxó (Eunápolis, Itamaraju, Prado, Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália)
  20. Pataxó Hãhãhãi (Alcobaça, Camacã, Camamu, Itaju do Colônia, Pau Brasil e Serra do Ramalho)
  21. Payayá (Utinga)
  22. Potiguara (Muquém de São Francisco)
  23. Tapuia (Muquém de São Francisco e Seabra)
  24. Truká (Paulo Afonso e Sobradinho)
  25. Tumbalalá (Abaré e Curaçá)
  26. Tupinambá (Belmonte, Buerarema, Eunápolis, Ilhéus, Itapebi, São José da Vitória e Una)
  27. Tuxá (Ibotirama, Muquém de São Francisco, Quijingue e Rodelas)
  28. Tuxi (Abaré)
  29. Xakriabá (Cocos)
  30. Xukuru-Kariri (Glória)

Por Correio da Bahia