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‘Dahmer’ cria fantasia e romantiza serial killer que matou 17 pessoas

A minissérie “Dahmer: Um Canibal Americano”, disponível na Netflix, tem dois objetivos ao contar um resumo da vida do assassino Jeffrey Dahmer: mostrar como ele se tornou um dos serial killers mais famosos do mundo e também o que permitiu com que ele fizesse 17 vítimas por mais de 10 anos sem ser preso.

O segundo objetivo foi alcançado com sucesso. O sentimento ao final de cada episódio é de revolta com o racismo e a homofobia das autoridades, que mais de uma vez ignoraram denúncias e evidências de que ele dopava, estuprava e matava jovens LGBTQIA+, em sua maioria não brancos. Mas a série tropeça na primeira meta.

Enquanto tenta explicar como a criança que cresceu com pais ausentes se tornou um assassino, o diretor Ryan Murphy (de “Glee” e “American Crime Story”) acaba caindo na armadilha de justificar suas ações e fazer o público sentir empatia por uma versão de Dahmer que não condiz necessariamente com a vida real.

Há quem diga que é necessário mostrar que serial killers não são monstros, e sim pessoas comuns que passam despercebidas na sociedade. É verdade: esse é um dos méritos do gênero “true crime”, quando feito de forma responsável. E, em partes, a série cumpre esse papel — mas ultrapassa o limite entre humanização e romantização ao adicionar elementos de ficção que confundem o público.

O maior exemplo disso é o sexto episódio, “Silenciado”, o mais elogiado da série. Após cinco capítulos alternando flashbacks da vida do assassino com imagens tensas (ainda que não explícitas) dos assassinatos, o público é surpreendido com um episódio que começa do ponto de vista do modelo surdo Tony Hughes, a 12ª vítima de Dahmer.

A série mostra cenas da infância do personagem, seus esforços para realizar o sonho de ser modelo e o seu relacionamento com o serial killer. Digo “personagem” porque o que vemos é uma ficção. Na vida real, não há indícios de que Tony Hughes tenha namorado Dahmer.

Na história de Murphy, contudo, ele é apresentado como alguém que poderia ter mudado a trajetória do serial killer. Em uma das cenas do episódio, Dahmer (Evan Peters) e Hughes (Rodney Burford) jogam um jogo de tabuleiro que o serial killer inventou quando era criança. Uma das regras: caso o peão de Hughes se aproxime demais do de Dahmer, ele seria morto “pelo vórtice”.

Como se a analogia com o comportamento do serial killer não fosse óbvia o suficiente, a série explica mais uma vez: após matar Tony, Dahmer se comove vendo as buscas organizadas pela família dele e decide ligar para as famílias de outra vítima, dizendo: “Vocês devem parar de procurá-lo, ele se foi no vórtice”.

Sabendo que Dahmer assassina Tony de qualquer forma, qual era o objetivo dos roteiristas ao inventar esse relacionamento? Se a ideia era tornar a morte da vítima ainda mais comovente, o tempo de episódio dedicado a sua vida antes de encontrar o assassino não era suficiente?

Ao invés de provar que Dahmer não era um monstro e sim um ser humano real, a inclusão do namoro na trama vem como um argumento contrário — e ainda conduz o público a criar empatia pelo assassino no caminho.

Criar apego do público com os personagens é uma ferramenta narrativa que Murphy usa com maestria. É assim que ele consegue gerar a revolta por todas as vezes em que a polícia ignorou as denúncias da vizinha Glenda Cleveland (Niecy Nash), por exemplo.

Não é um problema quando esse artifício é usado para que o público se apegue a vilões na ficção — afinal, não são pessoas reais e suas ações, por mais problemáticas e criminosas que sejam, não têm efeitos na vida real.

Jeffrey Dahmer, no entanto, não é nada fictício. Trata-se de uma pessoa que realmente existiu e fez vítimas cujas famílias ainda estão lidando com suas perdas e vendo a série se tornar um dos maiores sucessos da Netflix.

Um familiar de Errol Lindsay, 11ª vítima do serial killer, contou nas redes sociais que sua família não foi consultada pela produção e questionou quantos filmes, séries e documentários sobre o caso são necessários para cumprir o papel de conscientizar a população.

“Dahmer: Um Canibal Americano” não é um documentário, mas também não faz questão de explicar ao espectador o que é fato e o que é ficção. Quem se propõe a fazer uma obra que transita no limite entre um e outro não pode esperar que o público vá pesquisar sobre o caso após terminá-la, especialmente quando a obra em questão tem dez horas de duração.

Por UOL

Foto: Netflix/Divulgação