Altos Papos

Brasil vive risco de retorno de doenças com baixa cobertura vacinal infantil

“É como cachorro correndo atrás do próprio rabo. Os alertas sobre o risco das baixas coberturas vacinais entre crianças são constantes, mas a mensagem não chega a quem precisa. Fica apenas entre especialistas e a situação não se resolve.”

O alerta da diretora da Sociedade Brasileira de Imunização, Mônica Levi, torna-se assustador ao se consultar as estatísticas. Dados do Ministério da Saúde atualizados em janeiro mostram que, em 2021, menos da metade das crianças com 4 anos estavam com o esquema completo de vacinação contra pólio (duas doses de reforço) e contra a tríplice viral (que protege contra sarampo, caxumba e rubéola). A situação das demais vacinas não é menos preocupante. Todos os indicadores estão abaixo da meta, num panorama muito distinto do apresentado há alguns anos, quando o país tinha uma cobertura invejável, batendo a casa dos 90%.

“A última atualização dos dados de 2021 deve ocorrer amanhã [quinta-feira]. Mesmo que haja atraso no preenchimento das informações oficiais, fica claro que a situação é gravíssima”, constata Carla Domingues, ex-coordenadora geral do Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde (PNI).

Não é a primeira vez que o problema é identificado, mas tamanha intensidade é inédita. Em 2018, quando estava à frente do PNI, Carla fez uma apresentação sobre a queda das coberturas vacinais infantis numa reunião entre representantes do ministério, de secretarias estaduais e municipais de saúde.

Naquele momento, havia preocupação com a vacina contra pólio. No encontro, Carla chamou a atenção para uma prática comum de não aproveitar todas as chances para atualizar a carteira de vacinação. Pelo contrário. Era praxe na época não aceitar vacinar crianças no fim do dia, sob a justificativa de economia de recursos. Como muitas vacinas vêm em frascos de multidoses, havia nos municípios o receio de vacinar a criança no fim do dia, perder o restante do imunizante e, mais tarde, serem cobrados de desperdício por órgãos de controle.

A então coordenadora também mostrava a importância de se aproveitar a visita da criança à UBS para atualizar ao máximo a carteira vacinal. Não contar, dizia ela, com uma nova consulta tempos depois. Isso valia também para dar mais de uma vacina no mesmo dia. Para “poupar” crianças de muito choro, desprezando a recomendação do ministério, muitos profissionais preferiam pedir para que pais retornassem com a criança em outro dia, para completar o esquema. Muitos não voltavam.

Naquela mesma reunião, ao ouvir a apresentação de Carla, representantes de municípios atribuíram os baixos indicadores ao atraso no preenchimento das planilhas, a problemas no sistema de dados e também a um movimento antivacina que, diziam, já estava em curso.

Diante das cobranças, uma mobilização foi feita naquele ano para reduzir o atraso na vacinação. Meses depois, ao apresentar dados com discreta melhora, Carla comentou: “Isso demonstra o quanto a organização pode ser eficiente e o quanto o movimento antivacina é pouco expressivo no país”.

Passados quatro anos, no entanto, a situação é outra. Com as críticas de representantes do governo federal contra a vacina da Covid-19 para crianças e adolescentes, há uma hesitação maior para aderir à imunização em geral. “Há um movimento mais robusto contra a vacina. Reforçado por mensagens conflitantes do governo. E o resultado está aí: um retrocesso muito importante nos indicadores vacinais”, avalia Mônica.

Uma alta cobertura vacinal infantil não é capricho. Somente com ela é possível reduzir o risco de retorno de sarampo e pólio e outras doenças. Engana-se, ainda, quem acredita que o problema atinge apenas crianças. Se há um retorno da circulação destes vírus, populações de outras faixas etárias também ficam suscetíveis. “Caso isso aconteça, o esforço para contenção é ainda maior”, diz Carla.

Um dos riscos é a rubéola, doença evitável com a vacina tríplice viral. Durante a gestação, a infecção pode causar aborto ou malformações congênitas. Carla chama a atenção para as baixas coberturas de vacina contra meningite. “Sobretudo com retorno das aulas. O grupo de suscetíveis está longe de ser pequeno.”

O atraso na vacinação infantil foi identificado em vários países por causa da Covid-19. Nos primeiros meses da pandemia, com receio do contágio pelo novo coronavírus, a população deixou de buscar serviços de atendimento em todo o mundo, em muitos casos, com mensagens reforçadas pelos próprios governos. “Mas isso foi temporário. Em vários países, o atraso na imunização foi compensado meses depois. Não vimos, no entanto, esse fenômeno no Brasil. Os números eram baixos. Pioraram muito com a pandemia e não se recuperaram”, analisa Carla.

Reportagem a partir de dados da Lei de Acesso à Informação mostra que os gastos com propaganda para vacinação caíram. “É preciso mobilização de todos, chamar a atenção para as campanhas. Quantas foram feitas que a população não ficou sabendo? É o que chamo de campanha fantasma”, diz Mônica.

Carla avalia haver uma falta de comprometimento de todas as autoridades: “Diante da desinformação, de movimentos antivacina que começam a ganhar corpo, é preciso uma reação importante. Informação qualificada, mensagens claras de todos, com discurso único: mostrando a importância da vacinação e da proteção”.

Na próxima semana, tem início a campanha nacional para vacinação contra sarampo e gripe. É uma ótima oportunidade para o início da reversão de um quadro que, mais do que retrocesso, significa risco para a população. Resta saber se o cachorro seguirá correndo atrás do próprio rabo.

Por Lígia Formenti | Jota Info